Tratar de questões de costumes nunca deixou de ser um assunto polêmico do nosso tempo. No campo da Doutrina do Daime - onde a transmissão do conjunto de informações tem sempre um rito - a tarefa não é simples. O mundo contemporâneo tem por uma das suas principais características o
rompimento com o passado, a crença que o novo é sempre melhor do que o
velho. Isso não é difícil de constatar principalmente na história da doutrina fundada pelo Mestre Irineu que sofreu nas últimas décadas com o esfacelamento de sua memória cultural.
Hoje é grande o esforço em seu "tronco" pelo resgate dos pilares constituintes dessa missão. Talvez por isso, o Mestre Irineu tenha recomendado tanto no cântico de seu hinário, da lembrança ao "Velho Juramidam".
Cumpre-me o dever de lembrar, por exemplo, o rito por ele ensinado para o Festejo de São João Batista, o que faço com base em um trabalho de história-oral feito em 1989 com apoio da Fundação Garibaldi Brasil e na minha convivência privilegiada ao longo dos 40 anos, com alguns seguidores que ajudaram a firmar este caminho ético.
Importante tanto quanto a passagem dos Santos Reis - marco entre o início e o final de cada ano de trabalho na missão - o Festival de São João tem mistérios ainda mais profundos, trata da introdução ritualística dos hinários. Foi o primeiro hinário da história da doutrina, ocorrido no dia 23 de junho de 1935, na casa da senhora Maria Marques Vieira [Maria Damião].
Três metodologias foram implantadas neste período:
- A organização da Fogueira - que envolve diretamente o Batalhão Masculino;
- A organização da ornamentação junina - que envolve diretamente o Batalhão Feminino;
- Os ensaios dos Cânticos - que reúne os Batalhões masculino e feminino.
A ORGANIZAÇÃO DA FOGUEIRA - nos trabalhos do Mestre Irineu, mantém acessa a tradição católica que fala sobre o trato feito pelas primas Isabel (mãe de São João Batista) e Maria (mãe de Jesus Cristo). Segundo a história, Isabel teria mandado acender uma fogueira no topo de um monte para avisar sua prima Maria que seu filho [João Batista] havia nascido.
No Acre, esse trabalho envolve o Batalhão Masculino que finais de semana antes do dia de São João, se reúne sob um comando e vai para mata tirar a madeira para construção da fogueira. No Alto Santo essa tradição constroi uma das maiores fogueiras do Brasil, com aproximados 50 m³ de madeira retirados da floresta preservada pela própria comunidade, parte do manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) que recebe o nome do mestre fundador, Raimundo Irineu Serra.
A ORGANIZAÇÃO DA ORNAMENTAÇÃO JUNINA - é outro simbolismo que representa os santos populares: Santo Antônio, São Pedro e São João. Desde a preparação do primeiro hinário, em 1935, que essa tradição reúne as mulheres que confeccionam as bandeirinhas. Um trabalho de ornamentação que foi se aperfeiçoando com os tempos.
OS ENSAIOS DOS CÂNTICOS: No princípio existiam apenas 08 hinos na realização do primeiro hinário, mas com o passar dos tempos e a definição de um Calendário Oficial dos Trabalhos, os hinários de Germano Guilherme [Sois Balisa] e o Cruzeiro [do Mestre Irineu], foram oficializados na representação desta data.
É tradição que no período de maio e junho os hinários: Sois Balisa e o Cruzeiro sejam ensaiados. A metodologia foi deixada pelo Mestre Irineu. No Acre, esses ensaios - com o objetivo de reunir o maior grupo de seguidores - acontecem sempre aos finais de semana, assim como os demais serviços ligados a construção da fogueira e de ornamentação junina.
De forma que, entre os finais de semana de maio até o dia de São João, se verifica a maior mobilização entre a irmandade da Doutrina, o que apresenta outro aspecto de fundamental importância observado na metodologia ensinada por Raimundo Irineu Serra: o de relacionamento com seus seguidores.
Ao reunir separadamente homens e mulheres em tarefas peculiares, Irineu Serra exercia a arte de liderar, de estar sempre ouvindo as pessoas, delegando responsabilidades, supervisionando o trabalho, corrigindo falhas, estipulando prazos, enfim, trabalhando o conhecimento.
"O Mestre era sempre o primeiro a chegar e o último a sair nos mutirões ou aos ensaios", afirma dona Lourdes Carioca, ao se lembrar das atividades que participou a partir da década de 50.
Daí uma das importâncias do Festejo de São João Batista no modelo doutrinário deixado pelo Mestre Irineu.
O conjunto desses fatores, ou seja, a forma como foi construida a fogueira, os desenhos formados pelas bandeirinhas, as reuniões de organização dos fiscais, dos pelotões de forma, dos comandantes masculino e feminino, do comando do Serviço da Mata, os músicos, a equipe de fogos, de toda estrutura de trabalho, é responsável pelo brilho do Festejo do hinário de São João Batista da noite de 23 para 24 de junho.
Talvez por isso, o Mestre Irineu e a divindade sejam tão exigentes na execução desse ritual, exigindo os ensaios - uma oportunidade para ouvirmos a nós mesmo - para que possamos caprichar para a hora mágica de recebermos as entidades supremas que regem essa grande orquestra.
A história de São João Batista - o profeta precursor do prometido Messias - está viva na Doutrina do Daime.
São João era menino
Só vivia nas campinas
Pastorando as suas ovelhas
Pregrando as santas doutrinas (...)
Na próxima postagem, continuarei abordando esse tema.
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